A situação em Nova Orleans me faz pensar. Quanto vale um ser humano? Eu acredito sinceramente que valemos muito, seja quem for. Mas quando jogo essa tese de encontro com a realidade, ela perde toda a sua validade. Crio, então, outra tese. Você valerá pela sua profissão, valerá pelo seu status quo, valerá proporcionalmente pelos seus bens, valerá pela cor de sua pele, e outros tantos valores julgados como importantes para as sociedades. Agora sim, temos uma boa explicação da realidade.
Porém, no desastre em Nova Orleans, essa tese foi levada ao extremo. Ele não é apenas um desastre natural, mas um desastre para a nossa dignidade como espécie humana. No início, via-se uns e outros brancos perdidos entre os negros nas imagens que apareciam na TV, mas alguns dias depois, as imagens não mostravam mais nenhum branco, mas apenas negros pobres num estado quase miserável. A semelhança destas imagens com um país africano não era mera coincidência. Havia também muitos mortos, e estavam espalhados por toda a cidade, estavam passeando ao sabor das águas, estavam nas ruas e nos hospitais, estavam dormindo entre os vivos. Os hospitais estavam em condições lastimáveis, sem luz, água ou remédios, e já era difícil separar o vivo do morto. Creio estarem os cidadãos iraquianos em estado muito melhor frente a estes pobres cidadãos de Nova Orleans. Aliás, o Iraque é onde o Bush mais investe, retirando o dinheiro referente a prevenção de desastres como esse.
A minha sensação diante destes fatos é: restou na cidade apenas lixo, e muito. E como podemos comparar lixo com gente? Pensando dessa forma, as ações (ou a falta delas) realizadas pelo Estado estão corretas, simplesmente retirar os “cidadãos americanos” e depois abandonar a cidade às águas e ao lixo. Eu gostaria de saber onde estavam a SWAT, a força policial, a guarda nacional, e o exercito. Eu imagino que deveriam estar patrulhando o french quarter, ou então protegendo os bancos ou os escombros dos cassinos (decisões muito acertadas), enquanto pacientemente consertavam o dique partido.
Porém, muitas vozes discordaram da ação do Estado frente a essa calamidade. Com a opinião pública pressionando o governo, os negros pobres de Nova Orleans começaram a possuir algum valor (deixaram de ser lixo). O governo se pronunciou dizendo não ter sido acertada as ações tomadas, como se tivesse existido alguma. Ou seja, tentou retificar-se e começou a agir mais energicamente. Frente às pressões, o governo enviou o exército(lixeiros) para recolherem as “pessoas”(lixo), mas devemos dar o braço a torcer (pelo menos aos soldados, não digo o mesmo para ao Bush), em apenas dois dias eles fizeram o trabalho que não foi feito em quatro. Mas por que não se fez isso antes do furacão, quando se evacuou a cidade e tudo era mais fácil de ser feito? Por que nessa evacuação, só sobraram os mais pobres, e coincidentemente, negros?
A situação chegou a ponto de os Estados Unidos (tão inconcebível, que chega a ser engraçado), a maior potência mundial, ficarem necessitados de ajuda humanitária internacional. Vários paises se ofereceram para ajudar, e a mais interessante das ajudas é a de Cuba, oferecendo toneladas de remédios, 1100 médicos e treinamento contra furacões, e a da Venezuela, que ofereceu dinheiro e combustível a um preço baixo. Outro momento cômico foi ver o cantor de rap Kayne West falar ao vivo na televisão ao estilo dos programas humorísticos americanos: “George Bush doesn’t care about black people”. Numa tentativa de ilustrar o fato, podemos citar o talk show de David Letterman, um dos mais famosos por lá. Em um dos quadros do talk show, americanos falam de forma rápida e mecânica frases de uma lista dos 10 mais. Bem, Kayne West parecia estar participando desse quadro. Engraçado, porém uma triste afirmação.
Muitos correspondentes de guerra presentes em Nova Orleans afirmaram jamais terem visto nada semelhante. Mas o escritor e ativista Justin Felux, em um de seus artigos, disse já ter visto algo semelhante. Foi no furacão Jeanne, quando atingiu o Haiti. A situação dos haitianos foi a de completo abandono: corpos espalhados e pessoas sem saber o que fazer e pra onde ir. Os Estados Unidos mandaram uma ajuda insignificante, e durante uma semana os correspondentes ficaram por lá, e logo após eles partirem, todos esqueceram o que havia acontecido. Mas agora a situação se encontra em solo americano, com “cidadãos americanos”, e dessa vez não dá para esconder. Como ele (Justin Felux) disse, uma massa de negros e pobres americanos têm o mesmo ou menor valor do que uma bonita menina branca. Mas eu fico a pensar, é por serem pobres, por serem negros ou por serem os dois o motivo da demora da ajuda? Ou foi por algum outro motivo obtuso?
Uma conseqüência não prevista dessa passagem arrasadora foi o aumento da demanda de armas nas regiões devastadas pelo furacão e principalmente nas regiões vizinhas à Nova Orleans. Isto aconteceu devido ao aumento da oferta de saqueadores, que por sua vez aumentou devido à escassez de bens antes do furacão e da posse de nenhum bem após. Um dos comentários de um dos compradores das armas foi este: “Muitos refugiados de Nova Orleans estão vindo para estes lados, eles vêm com fome e sede, e não sabemos como podem reagir”.
Hmm, talvez tivesse sido melhor deixa-los lá mesmo, abarrotados em Nova Orleans, matando e roubando entre eles mesmos, não? Será que o bloqueio feito nas estradas que dão acesso à Nova Orleans além de impedir as pessoas de entrarem na cidade, não o foi também para impedi-las de saírem? Isso fará sentido segundo este raciocínio. Acreditemos nesta hipótese, as pessoas que ficaram em Nova Orleans, pelo menos a maioria, ficaram simplesmente por não terem para onde ir. Se não têm para onde ir e vão para as cidades vizinhas, apenas causarão mais problemas, pois Nova Orleans não é a única cidade debilitada pelo furacão. Para evitar isso ao máximo, devemos isolar a cidade e retirar os “refugiados” para lugares onde os poderemos controlar. Afinal, pobre é uma praga, e não é assim que pensamos?
Mas apesar de tudo as pessoas vivem através de seus valores e de suas crenças. Através de certas artimanhas, como esquecimento ou vista grossa, elas conseguem mentir para si sobre a realidade, e viverem suas vidas de forma despreocupada. Num país democrático e purista como os Estados Unidos afirmam ser, os valores máximos são estes: todos são iguais perante o Estado e a vida é mais preciosa do que todas as riquezas. Fazer vista grossa quando uma coisa destas acontece em outro país é fácil, mas quando acontece no próprio país, a situação se torna insuportável. A realidade da Lousiana ficou escancarada durante a hecatombe, e abriu uma grande ferida na puritana sociedade americana. Mostrou a grande mediocridade e hipocrisia deles, e seus valores já não mais possuem bases fortes. Dizem os especialistas que a imagem política do governo foi extremamente arranhada, mas eu acredito que a imagem dos americanos dos próprios americanos do ponto de vista moral é a que foi realmente arranhada (pois quer queira ou não, o governo é o espelho da sociedade), e para mim fica uma pergunta crucial. Como eles farão para esquecer que isso um dia aconteceu para continuarem a viver suas vidas de forma despreocupada?
3 de setembro de 2005