24 setembro, 2005

O Estado Poético

Este artigo será de uma certa forma exclusividade de minha sala de direito.
Nesta última sexta-feira (agora é sábado de madrugada que escrevo, estou sem sono), todos tiveram a oportunidade de aprender algo sobre o Estado Ético e o Estado Poiético. Agora desejo falar sobre o Estado Poético.
Creio que todos nós queriamos viver num mundo imaginário chamado Estado Ético. É obvio que os senhores sabem que isso não é a realidade. Mas vejam a contradição, isso é perfeitamente aceitavel e pensavel, nossa razão a compreende e a transforma num mundo real em nossa imaginação. Vejam os filosofos, sempre pensando num mundo perfeito, ideal e por ai vai.
O Estado Poiético foi uma tentativa de criar a realidade na nossa imaginação. Mas não a conseguimos, porque nossa racionalidade não consegue pensar a realidade. Nossa razão não a aceita, porque a realidade é ilógica. Então tentamos enxerga-la usando de outros meios e outros pontos de vista que a tornam lógica, porém imprecisa.
Mas o estado Poético se encontra perfeitamente com a realidade, inclusive é a realidade em si. Ela é totalmente irracional, nós não conseguimos entende-la, da mesma forma que uma poesia(mesmo que tentemos dizer que é possível interpreta-la). Nossa racionalidade não consegue imaginar o Estado Poético, porque senão eu teria posto outro nome, e não tentariamos criar modelos de realidade. A realidade é inimaginavel, ilógico e irracional, está além dos sonhos. E apesar de ser algo tão inimaginável, é algo que existe, algo que se pode tocar, algo que se sente, é algo poético. Por isso, o Estado Poético ficará mesmo somente na poesia, na livre interpretação do que você deseja ver. Mesmo até esse artigo morrerá nisso. Eu escrevo uma irracionalidade que nem eu mesmo entendo direito, mas ela ta lá, onde os poetas formam sua poesia. Eu apenas resolvi contar isso em prosa, pra ver se alguem prese pela realidade tão inadimplente em que vivemos.

Dr. Saulo e o estado ético da sala 1302(ou 1301, sei lá)

Dr. Saulo já se encontra impregnado do Estado Ético em sua alma, digo em sua racionalidade. Sua alma se encontra impregnada do Estado poético. Essa luta deve ser tremenda em sua mente. Tanta que ele já até deixou de escutar a realidade, está tentando realmente viver num estado ético. Ora, tenho meus motivos para pensar assim. Os senhores ao abrirem a boca para se dirigir ao Dr. Saulo será a mesma coisa que falar a uma parede (na verdade não porque pelo menos os senhores escutam o eco). Porém depois de alguma monta, ele responderá para o corrigir. Ele deve fazer isso porque, segundo ele mesmo disse, o todo, o pensamento do todo deve ser pensado por uns poucos, os intelectuais. Pois bem, na sala o único intelectual é o Dr. Saulo e nós não (e verdade seja dita, não somos mesmo), então devemos apenas escuta-lo. E a sua autoridade jamais deve ser questionada. Ele encarna a figura do Estado Ético, que mantém a ordem social do Todo pensada pelo intelectual (Dr. Saulo) através da coerção de faltas e possiveis puxões de orelha, de forma a aceitarmos o poder político porque sentimos que o Todo segue ao que queremos (o que não deixa de ser verdade, queremos aprender, não é?). Mas depois dessa explicação toda, eu deixo minha impressão sobre o caso. Eu até que gosto do Estado Ético em que vivemos na sala, mesmo porque são só por algumas horas. Vivamos o Estado Ético, aproveitemos, porque o Dr. Saulo, devo confidenciar aos senhores, um dia será uma grande lenda na nossa escola e na nossa sociedade do Estado Poético (se já não o for).

20 setembro, 2005

Cara de pau, coração de pedra

Uma declaração sobre Olavo dita pelo próprio Olavo, retirado de http://www.olavodecarvalho.org/semana/050918zh.htm .

"Com freqüência leitores me perguntam, perplexos, se (..) (os caras-de-pau) dizem essas coisas (meias-verdades ou até mesmo mentiras deslavadas) por malícia pura ou estupidez genuína. Respondo-lhes que se trata sempre de uma mistura das duas coisas, que não há oposição e sim complementaridade entre elas, já que a malícia não é uma forma de inteligência e sim o seu substitutivo demoníaco, que é o que resta no fundo da alma quando a inteligência, capacidade de apreender e admitir a verdade, foi vendida em troca de vantagens pessoais, de apoio grupal ou do sentimento lisonjeiro de "participação" em movimentos histórico-sociais hipnoticamente atraentes. Para tornar-se um autêntico charlatão intelectual, um ser humano tem de primeiro danar a sua própria inteligência, mediante a ingestão maciça de mentiras e ilusões, chegando à perfeição no momento em que, sabendo que mente, aprende a simular os sentimentos próprios de uma defesa apaixonada da verdade. É nesse momento que o leitor ou ouvinte, sabendo estar diante de uma mentira, fraqueja e se sente em dúvida, imaginando que ninguém teria a cara-de-pau de mentir com tanta afetação de sinceridade. É desse momento de dúvida que se prevalecem os Sáderes e tutti quanti, já que têm algo mais que cara-de-pau: têm coração de pedra, que é como a Bíblia simboliza a repressão voluntária da voz da consciência.

Mas, no fim, como diz a mesma Bíblia, sua loucura será exposta aos olhos de todos."


Eu sinceramente gostei de Olavo. Oxalá eu fosse assim, confiante em minhas próprias palavras até o fim. Eu apenas tento buscar a verdade (se é que existe), no meio de tantas mentiras. Olavo falou bem sobre todo aquele que acredita demais em suas próprias palavras. Mas eu carrego uma verdade que ninguém me tira, a de que sempre existirá dois ou mais lados, e que em todos esses lados haverá algo de coerente, algo de errado. O problema é que todos os lados vendem-se como se fossem os donos da verdade. Acho que está na hora de um novo movimento sofista.

15 setembro, 2005

A infeliz Louisiana contra o malvado Bush

Olavo de Carvalho é filósofo e puxa-saco do Bush nas horas vagas. Em seu artigo “O malvado Bush contra a infeliz Louisiana”, afirma ser culpa da Governadora da Louisiana e do prefeito de Nova Orleans o desastre ocorrido em Nova Orleans, e somente deles.

Analisemos melhor. Os argumentos para considerar o Estado da Louisiana culpado estão corretos. Os EUA são uma federação, e quer queira ou não, o governo federal não tem muita autoridade sobre o Estado, nem mesmo em caso de calamidade pública. A Governadora recusou toda e qualquer ajuda do governo federal. Segundo ela própria, “a entrada dos federais em cena seria desmoralizante para a administração estadual”.

O prefeito de Nova Orleans deu aviso pra todos evacuarem a cidade. Mas eles tinham que sair por vias próprias, e o prefeito se “esqueceu” que umas 100 000 pessoas não têm carro, ou não têm dinheiro, ou lugar pra ficar, ou uma mistura dessas coisas. Nova Orleans tinha um plano de ação para furacões, mas o plano ficou somente no papel.

Toda essa história fede. Onde está a verdade? Se Bush não tivesse realmente culpa, não precisaria ir à público pedir desculpas à nação pela falha e demora no resgate das vítimas. Inclusive ele mesmo assumiu a responsabilidade pelo fiasco.

Os dois, a Governadora e o prefeito, eram do partido democrata. Qual seria a relação da recusa na ajuda? Não acredito ter sido isso proposital, de maneira a querer realmente acusar Bush, mesmo porque o prefeito é negro. Creio ter sido um caso típico de orgulho provinciano. E onde então está a culpa de Bush?

Para Bush conseguir agir, precisou declarar estado de emergência nacional. Mas ele demorou demais para decretá-lo, e enquanto isso ficava passeando pelo Texas com o papai Bush. Somente decretou o estado de emergência quando todos começaram a se matar em Nova Orleans. Ele se acomodou, algo como o Lula faz por aqui. Mas a diferença está em que ninguém morreu ainda com o caso do Mensalão diretamente, enquanto que por lá milhares morreram.

Mas a culpa de Bush não para por aí. Ele desviou verbas que iriam para o reparo e manutenção dos diques em Orleans para a reconstrução do Iraque. Num artigo do jornal "Times-Picayune" de junho de 2004, um engenheiro fala sobre o corte de verbas para a manutenção dos diques. Quem cortou as verbas foi o Congresso, de maioria republicana, comandado pelo republicano Bush. E onde é que a administração Bush gasta mais dinheiro senão no Iraque?

Olavo rebate isso noutro artigo, Amantes do furacão. Ele afirma ser o Bush isento de culpa nisso também segundo os seguintes argumentos. Sendo a Louisiana o Estado mais corrupto dos EUA, caso fosse dado o dinheiro para a manutenção dos diques, o prefeito teria agido a lá Maluf. Portanto, o desastre teria acontecido de qualquer maneira. Agora Olavo, além de baba-ovo, é também Nostradamus.

De qualquer maneira, isso tudo é uma lama só. Governo Estadual, Municipal e Federal, são todos culpados. Não sei de quem eu sinto mais raiva. Bill Clinto pediu uma investigação sobre o que aconteceu, o que eu duvido que revele muito. Mas uma certeza eu tenho, caso os cidadão “refugiados” fossem brancos, com filhos de cabelos dourados e olhos cor de mel, e mesmo que fossem pobres e tivessem ficado pelos mesmo motivos, a situação seria bem diferente.

14 setembro, 2005

O Prato e o Livro

Essas são histórias reais, com personagens reais, porém num mundo fictício. Aconteceu com os amigos de um amigo meu. A conclusão dos fatos deixo a cargo do leitor.

O relato de Prudêncio

Já era uma hora da manhã e finalmente tinha acabado meu trabalho de vinte páginas. Eu não tinha impressora, apenas meu computador. O meu vizinho de quarto, o Garrote, havia deixado a chave dele comigo para que eu pudesse usar a sua impressora. Nesse dia muita gente não tinha dormido em casa. Quem devia estar no apartamento eram só o Santista e o Esquizofrânio. Quando abro a porta e saio do quarto, ouço um barulho forte e abafado, como um baque de algo pesado caindo num chão macio, e logo em seguida uma barulhada de vidro, tudo isso vindo do quarto do Esquizifrânio. Achei estranho, mas tinha algo de mais importante a fazer.

Vou pro quarto do Garrote, ligo o computador dele e vejo que esqueci de compartilhar o arquivo do trabalho pela rede. A impressora também está sem papel. Volto ao meu quarto e pego o papel. Quando estou saindo, lembro que o arquivo não está compartilhado na rede. Fecho a porta, ponho o arquivo na rede, e volto ao quarto do Garrote. Faço uma última revisão e mando imprimir. A impressão demora, cada folha era quase um minuto. Então fico a noite toda indo e voltando do meu quarto pro quarto do garrote. Acaba a impressão e vou dormir.

O relato de Esquizofrânio

Estava numa praia paradisíaca, cheia de gatinhas de biquinininhos e de topless, todas molhadinhas de água salgada e rindo umas com as outras. Estava deitado numa espreguiçadeira só observando, e escolhendo qual eu iria atacar. Uma delas então se aproximou trazendo um prato. Observava atentamente cada passo dessa menina, cada curva de seu corpo. Cada vez ela chegava mais perto e mais fixo olhava para ela.

Num movimento brusco ela jogou o prato no meu rosto. De repente senti frio, não conseguia enxergar mais nada, meu corpo estava pesado, mas ainda sentia o prato em minha cara. Foi então que percebi que estava sonhando até o presente momento. Naturalmente tomei um susto e pus-me a pensar: “Como pode um prato ter saído do meu sonho e ido parar na minha cara?”. Percebendo a estranha situação, num só impulso joguei o prato no chão (para minha sorte tenho tapete e o prato não quebrou) e pulei da minha cama. Corri e acendi a luz. Tentei abrir a porta pra ver se pegava um dos filhos da p... que fizeram essa brincadeira, mas ela estava trancada.

O quarto estava normal, na bagunça de sempre. Um quartinho pequeno e quadrado, que cabe exatamente uma cama, ocupando um lado inteiro da parede, do lado oposto ao da porta. Ao lado da cama uma mesa de ardósia, acima da mesa ficava uma prateleira de madeira ao lado um armário, tudo fixado na parede. As roupas estavam espalhadas, os livros estavam na estante, exceto um livro que estava estranhamente no chão. E o prato, que deveria estar em cima da mesa, estava até a uns momentos antes na minha cara. Estava assustado, pensando: “O que havia acontecido? Fosse o que fosse, não deveria ser bom, estava brincando comigo”. Ouvi então barulhos de porta vindos da sala. Deviam ser meus amigos, pensei. Corri para a sala e vi que tudo estava escuro e muito quieto, e rapidamente acendi a luz. A sala era pequena, na verdade era uma sala/cozinha. O apartamento tinha seis quartos, três em cada lado. O barulho que havia escutado poderia ter vindo de qualquer um. Comecei a olhar de baixo das frestas procurando em vão alguma luz acesa.

Voltei para o quarto, ainda tremendo de medo. Comecei a imaginar várias coisas: demônios, capetas, fantasmas. Lembrei então do Gasparzinho. De vez em quando, coisas estranhas aconteciam no apartamento, coisas sumiam sem ninguém saber, coisas apareciam, coisas mudavam de lugar. Como ninguém assumia a culpa, recaia sempre sobre o Gasparzinho. Então isso também só podia ser obra do Gasparzinho, apesar de até então nunca ter acreditado nele.

Nesse meio tempo, ouvi novamente barulho de portas. Sai do quarto e corri para a sala, mas não acho nada. Nenhum barulho, tudo apagado. Voltei para o meu quarto e esperei por outro barulho nervosamente. Nessa altura, minha adrenalina estava a mil, eu não queria saber de mais nada, só pegar o meliante das portas. Assim que ouvi, corri para a sala e de novo encontro nada. Havia chegado então a uma conclusão: “Seja o que for não é desse mundo, nada poderia ser tão rápido”.

Voltei para o meu quarto, derrotado, medroso, temendo pela minha vida. Nesse momento percebi algo. O livro que estava no chão, deveria estar na prateleira, mais ou menos na mesma direção em que estava o prato. Tinha descoberto o mistério, o livro caira da prateleira e batido na beirada do prato. Por sua vez, o prato dera duas voltas no ar, eu presumo, e caído exatamente na minha cara. Mas as portas continuavam um mistério. E mesmo que o prato tivesse agora algum sentido, continuava muito estranha essa coincidência, e ainda mais o motivo para o livro ter caído. Com certeza o Gasper tinha mão nisso, ele devia ter armado tudo.

Já não tendo mais o que fazer, senão rezar pela minha alma, fui para a cama tentar dormir. Mas continuava ouvindo os barulhos das portas. Mandei o Gasper tomar no c.. e me encolhi no lençol o mais fundo que pude. Liguei a televisão para não pensar em mais nada, e tentar não ouvir também. A toda a hora me vinham as imagens do prato na minha cara e a sensação de poder ser puxado pela perna a qualquer momento. Minha imaginação estava a mil, via um demoniozinho passando pra lá e pra cá, e esperava ansioso pelo momento em que iam me atacar. Mesmo com a televisão ligada, continuava escutando barulhos de porta se abrindo e fechando. Depois de horas de horror, de uma eternidade sem fim, de suplícios ininterruptos à virgem, de tentativas esdrúxulas de me convencer que aquilo tudo não existia, é que finalmente entrei em colapso, e acabei dormindo por exaustão.

10 setembro, 2005

Eram exatamente três horas da manhã

Eram exatamente três da manhã, mas em minha mente uma pergunta se fixava: o que era verdade, saber que não sei, ou não saber que sei? Se soubesse que não sei, então como posso saber que sei, mas se não soubesse que sei, então eu sei, e portanto eu deveria saber que não sei que sei. Apesar de pensamentos tão profundos, andava quase como um zumbi. Quase porque minha percepção marginal via as coisas acontecendo, via as pessoas passando, via os carros andando, eu parava quando era sinal vermelho, e olhava se vinha carro ou não, desviava de objetos no caminho e bêbados em caminho, e apesar disso, não sabia que essas coisas aconteciam, porque eu tentava saber se sabia que não sei, ou se não sei se sabia.

Tão boa era minha percepção que acabei por perceber ter entrado numa favela. Surpresa maior não podia, pois em um momento antes lembrava sair da rodoviária e ir em direção à Antonio Carlos. Surpresa e medo, sensações em que não podia confiar, pois se queria estar vivo devia confiar em meu intelecto. Uma senhora, muito simpática aliás, percebera minha chegada. Uma senhora idosa, de uns poucos 84 anos, mas que parecia ter 130, corcunda, raquítica e possivelmente paralítica. A expressão era daquelas bruxas saídas de estória infantil, com seus cabelos brancos e sua pele muito, mas muito ressecada, com as pelancas sobrando por todo o corpo e olhos terrivelmente profundos. Estava com um vestido florido com pétalas vermelhas, e de fundo possivelmente branca, pois a luz amarela da iluminação pública tornava o vestido meio amarelado. Para minha agonia a velha levantou, e se não soubesse não estar num cemitério me poria a gritar como uma menina de cinco anos. Os lábios entreabriram-se, numa tentativa clara de falar algo, mas a boca ressecada não permitiu. Quando finalmente passei pela velha, eu ouço o som de sua voz, uma voz rouca e aguda, falava de forma mansa e sofrida, como quem sabe que nesta vida se vive apenas uma vez para poder ficar brincando com o que se diz: “Éhhhh minino, tá se vendo quinum é daqui. Passa de cabeça baxa e nem cumpimenta, fica qui nem mucego, finge de num ve e fica radeando tudo. Cuidado minino qui ovê podi i pa vala si num anda mais ispeto.”

Pronto, ai está a minha morte, mas tudo bem, que um dia a gente morre mesmo. Tudo bem o caralho que eu quero é viver, não foi pra isso que fiquei estudando. Eu sinto, mas não sei, que já entrei dentro da favela um bom pedaço. Não vale a pena retornar, então sigo por onde têm asfalto, ir pelos becos é sujeira. Ta tudo muito deserto, até parece que todo mundo foi em algum baile funk. As casas, como deveria ser toda favela são puro tijolo e reboco. Eu sinto também que se continuar seguindo reto caio na catalão e fico salvo. As sensações são muitas e muito fortes, a atenção está focada, e continuo seguindo sem desistir. Finalmente passam uns malacos, e finjo estar tranqüilo, mas acho que minha perna e meus braços tremendo demonstram algum certo nervosismo. Eles olham pra mim, como se procurando algo. Eu tenho nada, ainda bem, só minha carteira, minha roupa e meu tênis de trezentos reais. Eles param na minha frente e não me resta nada senão falar algo do tipo, “ e aí atleticano, irmão de sangue, o galo vai ser campeão, já ganho quatro partidas seguidas. Por falar nisso, você têm alguma branquinha pra mim ai?”. Bem, devia ter falado tipo isso, mas não isso. Os caras não são nada burros e sacaram a minha inapropriada ironia: “qualé, ta tirando com o atlético, galo forte vingador irmão? Ta chamando meu time de droga, é?”. Por incrível que pareça eu consegui pensar rápido, mas me arrependi com a mesma rapidez. “Pô sangue, pensei que esse era a senha, foi meu brother qui falou pra mim falar isso. Eu nem tinha sacado que tinha isso implícito, vocês é que são inteligentes e conseguiram sacar isso, sou mó burrão”, para ouvir a réplica deles, “ agora fica aí chamando a gente de burro seu playboyzinho de merda, ele também te mandou vim aqui pra favela compra a branca de madruga é?”. A resposta foi automática: “Fiz mal, foi, é? Foi mal, mas é que nós tamo precisando pra curtir a night. Ae, se tive não prende não”.

Eram três moleques, digo moleques pois eles tinham no máximo treze anos, exceto com quem eu conversava, parecia ter uns dezessete anos. Os dois garotos tinham pintado o cabelo com água oxigenada e usavam uma faixa na cabeça, mas o maior tava natural com bastante gel e aquele topetinho característico. Eles estavam de bermuda branca, os três, e tênis da nike, aliás o maior tava com um nike shox preto bunitão. Lógico que as camisas da Cyclone não podiam faltar, de cores bizarras, uma verde, outra laranja, e por fim amarelo, usada pelo chefe da gangue. Ele levantou a camisa, acho que pra me mostrar a barriga sarada dele com um enfeite de ferro enfiado dentro da cueca. Carregar aquele ferro na cueca não devia ser nada agradável. Ao andar, a capacidade térmica do ferro é maior, e a sensação de frio aumenta, além de provavelmente ficar encostando no dito cujo. Na extremidade do ferro fora da cueca, tinha um cabo de plástico, pra ser melhor de segurar. Bom, depois dessas considerações, conclui se tratar de uma barra de ferro com cabo de plástico. O lógico seria ter encontrado uma arma, mas aí ele disse: “Eu gosto é de sangue, e de quebrar a cara de nego tirador de onda que nem você”. Então lá se foi, um momento que durou uma eternidade, com aquela sensação fria do ferro na minha cara, o impacto doloroso, a dormência, o torpor. Depois eu só ouvi o seu Valter me gritando que o portão estava aberto, e eu estava ali, parado e em pé, sem entender nada, com o portão amassando meu rosto. Tinha chegado em casa, são e salvo, apenas com as marcas do portão em minha cara. Eu tinha morrido, pensei, e estava imaginando coisas. Será o outro lado apenas o uso excessivo de imaginação? Só então lembrei de minha indagação filosófica, e finalmente descobri que sei pelo menos isto, moro ao lado da igreja Santo Antonio, na rua Espírito Santo, tinha acabado de sair de um bar que ficava no alto da rua da Bahia e eram exatamente três horas da manhã.

03 setembro, 2005

A tragédia da dignidade humana

A situação em Nova Orleans me faz pensar. Quanto vale um ser humano? Eu acredito sinceramente que valemos muito, seja quem for. Mas quando jogo essa tese de encontro com a realidade, ela perde toda a sua validade. Crio, então, outra tese. Você valerá pela sua profissão, valerá pelo seu status quo, valerá proporcionalmente pelos seus bens, valerá pela cor de sua pele, e outros tantos valores julgados como importantes para as sociedades. Agora sim, temos uma boa explicação da realidade.

Porém, no desastre em Nova Orleans, essa tese foi levada ao extremo. Ele não é apenas um desastre natural, mas um desastre para a nossa dignidade como espécie humana. No início, via-se uns e outros brancos perdidos entre os negros nas imagens que apareciam na TV, mas alguns dias depois, as imagens não mostravam mais nenhum branco, mas apenas negros pobres num estado quase miserável. A semelhança destas imagens com um país africano não era mera coincidência. Havia também muitos mortos, e estavam espalhados por toda a cidade, estavam passeando ao sabor das águas, estavam nas ruas e nos hospitais, estavam dormindo entre os vivos. Os hospitais estavam em condições lastimáveis, sem luz, água ou remédios, e já era difícil separar o vivo do morto. Creio estarem os cidadãos iraquianos em estado muito melhor frente a estes pobres cidadãos de Nova Orleans. Aliás, o Iraque é onde o Bush mais investe, retirando o dinheiro referente a prevenção de desastres como esse.

A minha sensação diante destes fatos é: restou na cidade apenas lixo, e muito. E como podemos comparar lixo com gente? Pensando dessa forma, as ações (ou a falta delas) realizadas pelo Estado estão corretas, simplesmente retirar os “cidadãos americanos” e depois abandonar a cidade às águas e ao lixo. Eu gostaria de saber onde estavam a SWAT, a força policial, a guarda nacional, e o exercito. Eu imagino que deveriam estar patrulhando o french quarter, ou então protegendo os bancos ou os escombros dos cassinos (decisões muito acertadas), enquanto pacientemente consertavam o dique partido.

Porém, muitas vozes discordaram da ação do Estado frente a essa calamidade. Com a opinião pública pressionando o governo, os negros pobres de Nova Orleans começaram a possuir algum valor (deixaram de ser lixo). O governo se pronunciou dizendo não ter sido acertada as ações tomadas, como se tivesse existido alguma. Ou seja, tentou retificar-se e começou a agir mais energicamente. Frente às pressões, o governo enviou o exército(lixeiros) para recolherem as “pessoas”(lixo), mas devemos dar o braço a torcer (pelo menos aos soldados, não digo o mesmo para ao Bush), em apenas dois dias eles fizeram o trabalho que não foi feito em quatro. Mas por que não se fez isso antes do furacão, quando se evacuou a cidade e tudo era mais fácil de ser feito? Por que nessa evacuação, só sobraram os mais pobres, e coincidentemente, negros?

A situação chegou a ponto de os Estados Unidos (tão inconcebível, que chega a ser engraçado), a maior potência mundial, ficarem necessitados de ajuda humanitária internacional. Vários paises se ofereceram para ajudar, e a mais interessante das ajudas é a de Cuba, oferecendo toneladas de remédios, 1100 médicos e treinamento contra furacões, e a da Venezuela, que ofereceu dinheiro e combustível a um preço baixo. Outro momento cômico foi ver o cantor de rap Kayne West falar ao vivo na televisão ao estilo dos programas humorísticos americanos: “George Bush doesn’t care about black people”. Numa tentativa de ilustrar o fato, podemos citar o talk show de David Letterman, um dos mais famosos por lá. Em um dos quadros do talk show, americanos falam de forma rápida e mecânica frases de uma lista dos 10 mais. Bem, Kayne West parecia estar participando desse quadro. Engraçado, porém uma triste afirmação.

Muitos correspondentes de guerra presentes em Nova Orleans afirmaram jamais terem visto nada semelhante. Mas o escritor e ativista Justin Felux, em um de seus artigos, disse já ter visto algo semelhante. Foi no furacão Jeanne, quando atingiu o Haiti. A situação dos haitianos foi a de completo abandono: corpos espalhados e pessoas sem saber o que fazer e pra onde ir. Os Estados Unidos mandaram uma ajuda insignificante, e durante uma semana os correspondentes ficaram por lá, e logo após eles partirem, todos esqueceram o que havia acontecido. Mas agora a situação se encontra em solo americano, com “cidadãos americanos”, e dessa vez não dá para esconder. Como ele (Justin Felux) disse, uma massa de negros e pobres americanos têm o mesmo ou menor valor do que uma bonita menina branca. Mas eu fico a pensar, é por serem pobres, por serem negros ou por serem os dois o motivo da demora da ajuda? Ou foi por algum outro motivo obtuso?

Uma conseqüência não prevista dessa passagem arrasadora foi o aumento da demanda de armas nas regiões devastadas pelo furacão e principalmente nas regiões vizinhas à Nova Orleans. Isto aconteceu devido ao aumento da oferta de saqueadores, que por sua vez aumentou devido à escassez de bens antes do furacão e da posse de nenhum bem após. Um dos comentários de um dos compradores das armas foi este: “Muitos refugiados de Nova Orleans estão vindo para estes lados, eles vêm com fome e sede, e não sabemos como podem reagir”.

Hmm, talvez tivesse sido melhor deixa-los lá mesmo, abarrotados em Nova Orleans, matando e roubando entre eles mesmos, não? Será que o bloqueio feito nas estradas que dão acesso à Nova Orleans além de impedir as pessoas de entrarem na cidade, não o foi também para impedi-las de saírem? Isso fará sentido segundo este raciocínio. Acreditemos nesta hipótese, as pessoas que ficaram em Nova Orleans, pelo menos a maioria, ficaram simplesmente por não terem para onde ir. Se não têm para onde ir e vão para as cidades vizinhas, apenas causarão mais problemas, pois Nova Orleans não é a única cidade debilitada pelo furacão. Para evitar isso ao máximo, devemos isolar a cidade e retirar os “refugiados” para lugares onde os poderemos controlar. Afinal, pobre é uma praga, e não é assim que pensamos?

Mas apesar de tudo as pessoas vivem através de seus valores e de suas crenças. Através de certas artimanhas, como esquecimento ou vista grossa, elas conseguem mentir para si sobre a realidade, e viverem suas vidas de forma despreocupada. Num país democrático e purista como os Estados Unidos afirmam ser, os valores máximos são estes: todos são iguais perante o Estado e a vida é mais preciosa do que todas as riquezas. Fazer vista grossa quando uma coisa destas acontece em outro país é fácil, mas quando acontece no próprio país, a situação se torna insuportável. A realidade da Lousiana ficou escancarada durante a hecatombe, e abriu uma grande ferida na puritana sociedade americana. Mostrou a grande mediocridade e hipocrisia deles, e seus valores já não mais possuem bases fortes. Dizem os especialistas que a imagem política do governo foi extremamente arranhada, mas eu acredito que a imagem dos americanos dos próprios americanos do ponto de vista moral é a que foi realmente arranhada (pois quer queira ou não, o governo é o espelho da sociedade), e para mim fica uma pergunta crucial. Como eles farão para esquecer que isso um dia aconteceu para continuarem a viver suas vidas de forma despreocupada?

3 de setembro de 2005