Eram exatamente três horas da manhã
Eram exatamente três da manhã, mas em minha mente uma pergunta se fixava: o que era verdade, saber que não sei, ou não saber que sei? Se soubesse que não sei, então como posso saber que sei, mas se não soubesse que sei, então eu sei, e portanto eu deveria saber que não sei que sei. Apesar de pensamentos tão profundos, andava quase como um zumbi. Quase porque minha percepção marginal via as coisas acontecendo, via as pessoas passando, via os carros andando, eu parava quando era sinal vermelho, e olhava se vinha carro ou não, desviava de objetos no caminho e bêbados em caminho, e apesar disso, não sabia que essas coisas aconteciam, porque eu tentava saber se sabia que não sei, ou se não sei se sabia.
Tão boa era minha percepção que acabei por perceber ter entrado numa favela. Surpresa maior não podia, pois em um momento antes lembrava sair da rodoviária e ir em direção à Antonio Carlos. Surpresa e medo, sensações em que não podia confiar, pois se queria estar vivo devia confiar em meu intelecto. Uma senhora, muito simpática aliás, percebera minha chegada. Uma senhora idosa, de uns poucos 84 anos, mas que parecia ter 130, corcunda, raquítica e possivelmente paralítica. A expressão era daquelas bruxas saídas de estória infantil, com seus cabelos brancos e sua pele muito, mas muito ressecada, com as pelancas sobrando por todo o corpo e olhos terrivelmente profundos. Estava com um vestido florido com pétalas vermelhas, e de fundo possivelmente branca, pois a luz amarela da iluminação pública tornava o vestido meio amarelado. Para minha agonia a velha levantou, e se não soubesse não estar num cemitério me poria a gritar como uma menina de cinco anos. Os lábios entreabriram-se, numa tentativa clara de falar algo, mas a boca ressecada não permitiu. Quando finalmente passei pela velha, eu ouço o som de sua voz, uma voz rouca e aguda, falava de forma mansa e sofrida, como quem sabe que nesta vida se vive apenas uma vez para poder ficar brincando com o que se diz: “Éhhhh minino, tá se vendo quinum é daqui. Passa de cabeça baxa e nem cumpimenta, fica qui nem mucego, finge de num ve e fica radeando tudo. Cuidado minino qui ovê podi i pa vala si num anda mais ispeto.”
Pronto, ai está a minha morte, mas tudo bem, que um dia a gente morre mesmo. Tudo bem o caralho que eu quero é viver, não foi pra isso que fiquei estudando. Eu sinto, mas não sei, que já entrei dentro da favela um bom pedaço. Não vale a pena retornar, então sigo por onde têm asfalto, ir pelos becos é sujeira. Ta tudo muito deserto, até parece que todo mundo foi em algum baile funk. As casas, como deveria ser toda favela são puro tijolo e reboco. Eu sinto também que se continuar seguindo reto caio na catalão e fico salvo. As sensações são muitas e muito fortes, a atenção está focada, e continuo seguindo sem desistir. Finalmente passam uns malacos, e finjo estar tranqüilo, mas acho que minha perna e meus braços tremendo demonstram algum certo nervosismo. Eles olham pra mim, como se procurando algo. Eu tenho nada, ainda bem, só minha carteira, minha roupa e meu tênis de trezentos reais. Eles param na minha frente e não me resta nada senão falar algo do tipo, “ e aí atleticano, irmão de sangue, o galo vai ser campeão, já ganho quatro partidas seguidas. Por falar nisso, você têm alguma branquinha pra mim ai?”. Bem, devia ter falado tipo isso, mas não isso. Os caras não são nada burros e sacaram a minha inapropriada ironia: “qualé, ta tirando com o atlético, galo forte vingador irmão? Ta chamando meu time de droga, é?”. Por incrível que pareça eu consegui pensar rápido, mas me arrependi com a mesma rapidez. “Pô sangue, pensei que esse era a senha, foi meu brother qui falou pra mim falar isso. Eu nem tinha sacado que tinha isso implícito, vocês é que são inteligentes e conseguiram sacar isso, sou mó burrão”, para ouvir a réplica deles, “ agora fica aí chamando a gente de burro seu playboyzinho de merda, ele também te mandou vim aqui pra favela compra a branca de madruga é?”. A resposta foi automática: “Fiz mal, foi, é? Foi mal, mas é que nós tamo precisando pra curtir a night. Ae, se tive não prende não”.
Eram três moleques, digo moleques pois eles tinham no máximo treze anos, exceto com quem eu conversava, parecia ter uns dezessete anos. Os dois garotos tinham pintado o cabelo com água oxigenada e usavam uma faixa na cabeça, mas o maior tava natural com bastante gel e aquele topetinho característico. Eles estavam de bermuda branca, os três, e tênis da nike, aliás o maior tava com um nike shox preto bunitão. Lógico que as camisas da Cyclone não podiam faltar, de cores bizarras, uma verde, outra laranja, e por fim amarelo, usada pelo chefe da gangue. Ele levantou a camisa, acho que pra me mostrar a barriga sarada dele com um enfeite de ferro enfiado dentro da cueca. Carregar aquele ferro na cueca não devia ser nada agradável. Ao andar, a capacidade térmica do ferro é maior, e a sensação de frio aumenta, além de provavelmente ficar encostando no dito cujo. Na extremidade do ferro fora da cueca, tinha um cabo de plástico, pra ser melhor de segurar. Bom, depois dessas considerações, conclui se tratar de uma barra de ferro com cabo de plástico. O lógico seria ter encontrado uma arma, mas aí ele disse: “Eu gosto é de sangue, e de quebrar a cara de nego tirador de onda que nem você”. Então lá se foi, um momento que durou uma eternidade, com aquela sensação fria do ferro na minha cara, o impacto doloroso, a dormência, o torpor. Depois eu só ouvi o seu Valter me gritando que o portão estava aberto, e eu estava ali, parado e em pé, sem entender nada, com o portão amassando meu rosto. Tinha chegado em casa, são e salvo, apenas com as marcas do portão em minha cara. Eu tinha morrido, pensei, e estava imaginando coisas. Será o outro lado apenas o uso excessivo de imaginação? Só então lembrei de minha indagação filosófica, e finalmente descobri que sei pelo menos isto, moro ao lado da igreja Santo Antonio, na rua Espírito Santo, tinha acabado de sair de um bar que ficava no alto da rua da Bahia e eram exatamente três horas da manhã.
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